domingo, 31 de maio de 2009

Conto Brasileiro: Gaetaninho (Alcântara Machado)


"- Xi, Gaetaninho, como é bom!


Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. O Ford quase o derrubou e ele não viu o Ford. O carroceiro disse um palavrão e ele não ouviu o palavrão.


- Eh! Gaetaninho Vem pra dentro.

Grito materno sim : até filho surdo escuta. Virou o rosto tão feio de sardento, viu a mãe e viu o chinelo.


- Subito!



Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho. Estudando o terreno. Diante da mãe e do chinelo parou. Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar a direita. Mas deu meia volta instantânea e varou pela esquerda porta adentro.


Eta salame de mestre!

Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento. Por isso mesmo o sonho de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um sonho.


O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro a cidade. Mas como? Atrás da Tia Peronetta que se mudava para o Araçá. Assim também não era vantagem.


Mas se era o único meio? Paciência.

Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro.


Que beleza , rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a Tia Filomena para o cemitério. Depois o padre. Depois o Savério noivo dela de lenço nos olhos. Depois ele. Na boléia do carro. Ao lado do cocheiro. Com a roupa marinheira e o gorro branco onde se lia: ENCOURAÇADO SÃO PAULO.


Não. Ficava mais bonito de roupa marinheira mas com a palhetinha nova que o irmão lhe trouxera da fábrica. E ligas pretas segurando as meias. Que beleza, rapaz! Dentro do carro o pai, os dois irmãos mais velhos (um de gravata vermelha, outro de gravata verde) e o padrinho Seu Salomone. Muita gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando o Gaetaninho.


Mas Gaetaninho ainda não estava satisfeito. Queira ir carregando o chicote. O desgraçado do cocheiro não queria deixar. Nem por um instantinho só.


Gaetaninho ia berrar mas a Tia Filomena com mania de cantar o "Ahi, Mari!" todas as manhãs o acordou.


Primeiro ficou desapontado. Depois quase chorou de ódio. Tia Filomena teve um ataque de nervos quando soube do sonho de Gaetaninho. Tão forte que ele sentiu remorsos. E para sossego da família alarmada com o agouro tratou logo de substituir a tia por outra pessoa numa nova versão de seu sonho. Matutou, matutou, e escolheu o acendedor da Companhia de Gás, seu Rubino, que uma vez lhe deu um cocre danado de doído.



Os irmãos (esses) quando souberam da história resolveram arriscar de sociedade quinhentão no elefante. Deu a vaca. E eles ficaram loucos de raiva por não haverem logo adivinhado que não podia deixar de dar a vaca mesmo.


O jogo na calçada parecia de vida ou morte. Muito embora Gaetaninho não estava ligando.


- Você conhecia o pai do Afonso, Beppino?

- Meu pai deu uma vez na cara dele.

- Então você não vai amanhã no enterro. Eu vou!

O Vicente protestou indignado:

- Assim não jogo mais ! O Gaetaninho está atraplhando!

Gaetaninho voltou para o seu posto de guardião. Tão cheio de responsabilidades.


O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto. Com o tronco arqueado, as pernas dobradas, os braços estendidos, as mãos abertas, Gaetaninho ficou pronto para a defesa.


- Passa pro Beppino!



Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque. Ela cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua.


- Vá dar tiro no inferno!

- Cala a boca, palestrino!

- Traga a bola!


Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e matou.


No bonde vinha o pai de Gaetaninho.


Agurizada assustada espalhou a notícia na noite.


- Sabe o Gaetaninho?

- Que é que tem?

- Amassou o bonde!


A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.


Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua do Oriente e Gaetaninho não ia na boléia de nenhum dos carros do acompanhamento. Lá no da frente dentro de um caixão fechado com flores pobres por cima. Vestia a roupa marinheira, tinha as ligas, mas não levava a palhetinha.


Quem na boléia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno vermelho que feria a vista da gente era o Beppino."

*do livro Brás, Bexiga e Barra Funda

......................................................................................................

O AUTOR:

ANTÔNIO CASTILHO DE ALCÂNTARA MACHADO D'OLIVEIRA nasceu em São Paulo em 25 de maio de 1901. De família ilustre, o pai fora escritor e professor da Faculdade de Direito de São Paulo. Forma-se em direito no ano de 1924, mas não exerce a profissão, pois se dedica ao jornalismo, chegando a ocupar o cargo de redator-chefe do Jornal do Comércio.

No ano de 1925 realiza sua segunda viagem à Europa, onde já estivera quando criança. De lá traz crônicas e reportagens que originaram seu livro de estréia, Pathé-Baby (1926), prefaciado por Oswald de Andrade.
Em 1922 não participa da Semana de Arte Moderna, mas, no ano de 1926, junto com A.C. Couto de Barros, funda a revista Terra Roxa e Outras Terras. Em 1928 publica a obra "Brás, Bexiga e Barra Funda". Na primeira edição dessa obra o prefácio é substituído prefácio por um texto intitulado "Artigo de fundo", disposto em colunas, como as de uma página de jornal, onde afirmava:

"Este livro não nasceu livro: nasceu jornal. Estes contos não nasceram contos: nasceram notícias. E este prefácio portanto também não nasceu prefácio: nasceu artigo de fundo".

Essa introdução revela uma característica fundamental de sua obra: a narrativa curta, muito semelhante à linguagem jornalística. Nessa obra Alcântara Machado revela a sua preocupação em descrever os habitantes e os costumes das pessoas que habitam os bairros humildes da capital paulistana. Assim, fez surgir um novo tipo de personagem na literatura brasileira: o ítalo-brasileiro.

Em 1928 une-se a Oswald de Andrade para fundar a Revista de Antropofagia. Alcântara Machado, juntamente com Raul Bopp, foi o diretor dessa revista no período de maio de 1928 a fevereiro de 1929. Ainda em 1929 lança a obra "Laranja da China".

Em 1931 dirige a Revista Hora, junto com Mário de Andrade. Ingressando na política, muda-se para o Rio de Janeiro, onde exerce também a crítica literária. Candidata-se ao cargo de deputado federal. Eleito, não chega a ser empossado, pois falece em conseqüência de complicações de uma cirurgia de apêndice, no Rio de Janeiro, em 14 de abril 1935. (biografia do Mundo Cultural)

......................................................................................................


SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR E SUA OBRA:

Alcântara Machado: A vozdos Ítalo-Paulistas (Aline Soler Parra - Unicamp)
O artigo contém dados sobre a biografia do autor, seu contexto de produção e a análise do conto "Gaetaninho".

Download do livro BRÁS, BEXIGA E BARRA FUNDA

Nenhum comentário:

Postar um comentário