sábado, 28 de fevereiro de 2009

Contos do Mundo: Arabia (James Joyce)


País de origem: Irlanda
Tradução: Roberto Schmitt-Prym


A North Richmond, uma rua sem saída, era muito tranqüila, exceto na hora em que a Christian Brother's School liberava os alunos. Uma casa de dois andares, desabitada e isolada de ambos os lados, bloqueava-lhe uma das extremidades. As outras residências, cientes das vidas respeitáveis que abrigavam, fitavam-se com imperturbáveis fachadas escuras.

O antigo inquilino de nossa casa, um sacerdote, havia morrido na sala dos fundos. Nos cômodos, tanto tempo fechados, pairava um odor de mofo e o quarto de despejo, atrás da cozinha, estava abarrotado de papéis velhos. Entre eles encontrei algumas brochuras com as páginas úmidas e onduladas: O Abade, de Walter Scott, O Devoto Comungante e as Memórias de Vidocq. Gostei mais deste último por causa de suas folhas amareladas. O quintal abandonado, atrás da casa, tinha no centro uma macieira e alguns arbustos esparsos, sob um dos quais encontrei a bomba enferrujada da bicicleta do antigo morador. Tinha sido um padre muito piedoso e, no testamento, deixara todo seu dinheiro para instituições de caridade e a mobília da casa para a irmã.

Ao chegarem os curtos dias de inverno, escurecia antes que tivéssemos terminado o jantar. Quando saíamos à rua, as casas se encontravam mergulhadas na sombra. O pedaço de céu sobre nós era de um violeta cambiante, contra o qual os postes erguiam a pálida luz de suas lanternas. Aguilhoados pelo vento gélido, brincávamos até nos esquentarmos e nossos gritos ecoavam na rua silenciosa. O curso das brincadeiras conduzia-nos às vielas escuras e lamacentas atrás de nossas casas, onde desafiávamos os rudes moradores dos barracos, aventurando-nos até os portões de quintais sombrios e úmidos, impregnados do cheiro fétido das fossas, ou aproximando-nos de estábulos escuros e odorosos, onde, às vezes, um cocheiro escovava e lustrava seu cavalo ou fazia tilintar os arreios de fivelas metálicas. Ao retornarmos à nossa rua, a luz das cozinhas projetava-se através das janelas, nos pequenos terraços. Se percebíamos meu tio dobrando a esquina, ocultávamo-nos num lugar escuro até termos certeza de que entrara em casa. E se a irmã de Mangan vinha à porta chamá-lo para o chá, continuávamos escondidos, observando-a olhar a rua, para ver se desistia. Se não tornava a entrar, deixávamos o esconderijo e, resignados, dirigíamo-nos à escada da casa de Mangan, no alto da qual ela nos esperava. A silhueta de seu corpo recortava-se na luz da porta entreaberta. Mangan relutava sempre antes de obedecer e eu ficava junto ao corrimão, contemplando-a. O vestido rodava quando ela movia o corpo e a macia trança de seus cabelos abalavam de um ombro para outro. Todas as manhãs, sentava-me no chão da sala da frente para vigiar a porta da sua casa. Levantava a cortina apenas alguns centímetros a fim de que ninguém pudesse me descobrir. Meu coração disparava ao vê-la surgir à porta. Corria para o vestíbulo, apanhava meus livros e seguia-a. Conservava sua figura morena sempre à vista e, ao nos aproximarmos do ponto em que nossos caminhos se separavam apressava o passo e andava à sua frente. Isto repetia-se todas as manhãs. Nunca havia falado com ela, a não ser algumas frases ocasionais e, no entanto, para o meu sangue inebriado seu nome era um apelo irresistível. Sua imagem acompanhava-me mesmo nos lugares menos românticos. Nas noites de sábado, quando minha tia ia fazer compras no mercado, eu precisava acompanhá-la para ajudar com os pacotes. Caminhávamos pelas ruas iluminadas, acotovelando-nos com bêbados e mulheres que pechinchavam, em meio aos impropérios dos trabalhadores, aos gritos dos garotos que montavam guarda às barricas cheias de cabeças de porco e à voz fanhosa dos cantores de rua, que interpretavam uma canção popular sobre O'Donovan Rossa ou uma balada a respeito dos problemas do país. Todos esses ruídos convergiam numa única sensação vital para mim: imaginava conduzir meu cálice incólume, através de uma multidão, de inimigos. Certos momentos, seu nome brotava-me dos lábios em estranhas preces e súplicas que eu mesmo não compreendia. Meus olhos enchiam-se de lágrimas (não saberia dizer a razão) e, às vezes, uma torrente parecia transbordar meu coração e inundar-me o peito. Pouco me preocupava o futuro. Não sabia se falaria ou não com ela e, se o fizesse, de que modo revelaria minha tímida adoração. Meu corpo, porém, era uma harpa cujas cordas vibravam às suas palavras e gestos.

Certa noite, fui à sala dos fundos onde o padre havia morrido. Era uma noite escura e chuvosa e a casa estava em completo silêncio. Através de uma vidraça quebrada, eu ouvia a chuva bater contra a terra, as finas e incessantes agulhas de água tamborilando nos canteiros encharcados. Bem longe, brilhava uma luz ou janela iluminada. Agradava-me enxergar tão pouco. Os meus sentidos todos pareciam embotar-se e, a ponto de desfalecer, apertei as mãos até meus braços começarem a tremer, murmurando várias vezes: Ó amor!
Finalmente, ela falou comigo. Às suas primeiras frases, fiquei tão encabulado que não soube o que responder. Perguntou-me se eu pretendia ir ao Arábia.

Não me recordo se respondi ou não. Ela disse que adoraria ir, pois devia ser uma esplêndida quermesse.

- E por que não vai? - perguntei.

Enquanto falava, ela fazia girar um bracelete de prata. Disse que não poderia ir porque seu colégio faria retiro naquela semana. Nesse momento, seu irmão e dois outros meninos brigavam por causa dos bonés e eu encontrava-me sozinho encostado ao corrimão. Ela se apoiara numa das barras e inclinava o corpo em minha direção. A luz do poste diante de nossas casas roçava a curva clara de seu pescoço, iluminando-lhe os cabelos. Alcançava, mais embaixo, sua mão sobre a grade e revelava, ao tocar-lhe o vestido, a ponta do saiote que se deixava entrever em sua lânguida postura.

- Você é que devia ir - afirmou.

- Se eu for - prometi - trarei uma lembrança para você.

Acordado ou sonhando que loucas e intermináveis fantasias consumiram meus pensamentos a partir dessa noite! Queria suprimir os tediosos dias de espera. Os deveres da escola irritavam-me. À noite, no quarto, durante o dia, na aula, sua imagem interpunha-se entre meus olhos e a página que me esforçava em ler. No silêncio em que minha alma vagava luxuriosamente, as sílabas da palavra Arábia remetiam-me a um encanto oriental. Pedi permissão para ir à quermesse no sábado à noite. Minha tia surpreendeu-se e disse esperar não se tratasse de uma reunião da franco-maçonaria. Na aula, quase não respondia às questões. De amável, o olhar do professor tornava-se severo. "Espero que não esteja ficando preguiçoso", disse ele. Não conseguia, ordenar meus pensamentos errantes. Quase não tinha paciência para suportar os deveres cotidianos que, interpondo-se entre mim e meu desejo, pareciam brinquedos de criança, brinquedos desagradáveis e monótonos.

Na manhã de sábado lembrei a meu tio que desejava ir à quermesse. Estava atarantado junto ao porta-chapéus, procurando a escova e respondeu rispidamente:

- Já sei menino, já sei.

Como ele se encontrava no vestíbulo, não pude ir à sala da frente postar-me à janela. Senti que o mau humor imperava na casa e fui desanimado para a escola. Fazia um frio implacável e meu coração já se mostrava apreensivo. Quando voltei para o jantar, meu tio ainda não havia chegado. Ainda era cedo. Sentei-me e fiquei olhando para o relógio, mas seu tique-taque acabou por me irritar e sai da sala. Subi a escada e ganhei o andar superior da casa. Os cômodos frios, desertos e escuros aliviaram-me a tensão. Atravessei-os cantando. Da janela da frente, vi meus companheiros brincando lá embaixo na rua. Seus gritos chegavam-me indestintos e confusos. Apertando a testa contra o vidro gelado, olhei para a casa de tijolos escuros em que ela morava. Devo ter ficado, ali quase uma hora, vendo apenas, retida na memória, sua imagem num vestido marrom, tocada de leve pela luz na curva do pescoço, na mão sobre a grade, na barra do vestido.

Ao descer, encontrei a senhora Mercer sentada junto à lareira. Era uma velha mexeriqueira, viúva de um usurário, que colecionava selos usados com um objetivo piedoso qualquer. Tive de suportar sua tagarelice durante o chá. O lanche prolongou-se por mais de uma hora e meu tio não chegava. A senhora Mercer levantou-se para ir embora. Sentia não poder esperar mais, disse ela, e que passava das oito e não gostava de estar fora de casa até muito tarde, pois o frio fazia-lhe mal. Quando saiu, comecei a andar pela sala com os punhos cerrados.

- Talvez tenha de desistir da quermesse por esta noite de Nosso Senhor - disse minha tia.

Às nove horas, ouvi o ruído da chave de meu tio na porta de entrada. Escutei-o resmungar e o porta-chapéus balançar ao peso do seu casaco. Sabia interpretar esses sinais. Na metade do jantar, pedi-lhe que me desse o dinheiro para ir à quermesse. Ele havia esquecido.

- Já está todo mundo na cama e no segundo sono - disse ele.

Não ri. Minha tia interveio enérgica:

- Por que não dá logo o dinheiro e o deixa ir? Já o fez esperar muito tempo.

Meu tio disse sentir muito ter se esquecido. Disse que acreditava no velho ditado: "Só trabalho e nenhum prazer é que faz de João um triste rapaz". Indagou-me aonde ia e quando tornei a explicar, perguntou-me se conhecia O Adeus do Árabe ao seu Corcel. Quando eu saía pela cozinha, ele começava a recitar os primeiros versos do poema para minha tia.

Apertando na mão o florim que recebera, desci a rua Buckingham. As calçadas iluminadas e repletas de compradores que deixavam as lojas deram novo alento ao propósito de minha viagem. Acomodei-me num vagão de terceira classe no trem vazio. Após insuportável demora, o trem se moveu vagarosamente. Arrastou-se entre casas em ruínas e sobre o rio cintilante. Na estação de Westland Row, a multidão comprimiu-se contra as portas do vagão, mas os fiscais fizeram-na recuar, dizendo que aquele era um trem especial para a quermesse. Permaneci sozinho no vagão. Minutos depois o trem parou diante de uma plataforma improvisada. Ao descer, vi no mostrador iluminado de um relógio que faltavam dez minutos para as dez. Diante de mim estava o imenso edifício, ostentando o mágico nome.

Não encontrei nenhum guichê de seis pence e, com medo de que a quermesse fosse fechar, passei rapidamente por uma das borboletas, pagando um xelim ao porteiro de ar fatigado. Entrei num vasto saguão, circundado à meia altura por uma galeria. Quase todas as barracas estavam fechadas e parte do saguão achava-se às escuras. Reinava ali o silêncio de um templo vazio. Caminhei timidamente para o centro do edifício. Algumas pessoas estavam reunidas diante das barracas ainda abertas. À frente de uma cortina, sobre a qual se desenhava em lâmpadas coloridas o nome Café Chantant, dois homens contavam dinheiro numa bandeja. Eu ouvia o tilintar das moedas caindo.

Recordando com dificuldade o motivo que me trouxera, aproximei-me de uma das barracas e examinei alguns vasos de porcelana e aparelhos de chá ornados de flores. Na porta da barraca uma jovem conversava e ria com dois rapazes. Notei-lhes o sotaque britânico e ouvi imprecisamente o que diziam:

- Ah, eu nunca disse isso!

- Ah, disse sim!

- Não disse!

- Ela não disse?

- Sim, eu ouvi.

- Ah, isso é... mentira!

Percebendo minha presença, a jovem aproximou-se e perguntou-me se desejava comprar alguma coisa. O tom de sua voz não era encorajador. Parecia ter falado comigo por obrigação. Olhei humildemente para dois grandes jarros que, como sentinelas orientais, postavam-se à sombria entrada da barraca e murmurei:

- Não, obrigado.

A jovem mudou a posição de um dos vasos e voltou aos rapazes. Retomaram a discussão anterior. A jovem olhou-me uma ou duas vezes por sobre o ombro.

Embora soubesse que era uma atitude inútil, permaneci algum tempo diante da barraca, para acentuar a impressão de que estava realmente interessado naqueles objetos. Finalmente, voltei-me e caminhei vagarosamente para o meio do saguão. Soltava as moedas dentro do bolso, fazendo-as bater uma na outra. No fundo da galeria, alguém gritou que a luz fora desligada. A parte superior do saguão estava agora completamente apagada.

Pasmo na escuridão, eu me vi como uma criatura tangida e ludibriada pela vaidade. Meus olhos ardiam de angústia e ódio.


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O AUTOR
James Augustine Aloysius Joyce (Dublin, 2 de Fevereiro de 1882 — Zurique, Suíça, 13 de Janeiro de 1941) foi um escritor irlandês expatriado. É amplamente considerado um dos autores de maior relevância do século XX. Suas obras mais conhecidas são o volume de contos Dublinenses (1914) e os romances Retrato do Artista Quando Jovem (1916), Ulisses (1922) e Finnegans Wake (1939)

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Noções básicas de teroria literária: Elementos e características do Gênero Narrativo.

MATERIAL EXTRAÍDO DA ÁREA VIP (AULA 4)

* Narrador

É o contador da história, um ser ficcional a quem o autor transfere a tarefa da narrativa. O narrador pode posicionar-se de diversas maneiras:

-Foco narrativo em terceira pessoa- o narrador está fora dos acontecimentos, ou seja, não é personagem. Pode ser um mero observador, que presencia, testemunha os acontecimentos; ou pode manifestar-se onisciente, conhecendo todos os fatos, inclusive os pensamentos e emoções dos personagens.

-Foco narrativo em primeira pessoa - o narrador participa dos acontecimentos. Trata-se, portanto, de um narrador-personagem, que pode ser principal (protagonista) ou secundário.

Vamos analisar alguns fragmentos de obras literárias exigidas em vestibulares:

Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher com uma criança e eu. (Natal na Barca – Lygia Fagundes Telles)

Observe no trecho acima:
- o uso dos verbos: 'quero', 'devo'
- as formas pronominais 'me', 'nos'

São indicativos do uso da primeira pessoa (EU). O pronome 'eu' aparece explícito no final do trecho, facilitando o nosso trabalho: trata-se, portanto, de narrador em primeira pessoa. Sendo toda a situação vivida em primeiro plano pela narradora, temos no caso uma narradora protagonista.

Vamos a outro trecho, desta vez de Machado de Assis:

Durante os primeiros minutos, Honório não pensou nada; foi andando, andando, andando, até o Largo da Carioca. No Largo parou alguns instantes, -- enfiou depois pela Rua da Carioca, mas voltou logo, e entrou na Rua Uruguaiana. Sem saber como, achou-se daí a pouco no Largo de S. Francisco de Paula; e ainda, sem saber como, entrou em um Café. Pediu alguma cousa e encostou-se à parede, olhando para fora. Tinha medo de abrir a carteira; podia não achar nada, apenas papéis e sem valor para ele. Ao mesmo tempo, e esta era a causa principal das reflexões, a consciência perguntava-lhe se podia utilizar-se do dinheiro que achasse. Não lhe perguntava com o ar de quem não sabe, mas antes com uma expressão irônica e de censura. Podia lançar mão do dinheiro, e ir pagar com ele a dívida?(A Carteira – Machado de Assis)

Veja: "Honório não pensou em nada". ELE (3ªpessoa) não pensou em nada. Todas as formas verbais do excerto (enfiou, voltou, achou, entrou...) somadas às formas pronominais (lhe, se, ele) revelam o foco narrativo em terceira pessoa.
Agora, como esse narrador sabe que Honório não pensou em nada? Como chega a penetrar-lhe a consciência? Trata-se do poder na onisciência. Portanto, temos um narrador em 3ª pessoa, onisciente.

Agora mais um trecho, desta vez com uma situação diferente:

Fräulein é que percebeu muito bem a mudança do rapaz, finalmente! Carecia agora se reter um pouco, mesmo voltar pra trás. Avançara por demais porque ele tardava. Devia guardar-se outra vez. As coisas principiam pelo princípio.

— Bom dia, Fräulein!
— Bom dia, Carlos.
— Wie gehfs Ihnen?
— Danke, gut1.
— Como vai?
— Bem, obrigada.
— Fräulein! vamos passear no jardim com as crianças!
— Não posso, Carlos. Estou ocupada.
— Ora, vamos! Maria Luísa também vai, ela precisa! Aldinha! Laurita! vamos passear no jardim com Fräulein!
— Vamos! Vamos! as crianças apareceram correndo.
— Vamos hein!..."
— Carlos, eu já disse que não posso. Vá você.
Levar as crianças no jardim... ora essa! ele não era ama-seca! Mas foi.
É coisa que se ensine o amor? Creio que não. Pode ser que sim. Fräulein tinha um método bem dela.

(Amar, Verbo Intansitivo – Mário de Andrade)

O trecho se inicia com a referência do narrador a uma terceira pessoa (ELA), Fräulein. Em seguida temos um diálogo, representado pelo discurso direto (não se trata de narrativa em primeira pessoa!). Por fim, o narrador comenta o diálogo (do qual ele não participa), emitindo suas opiniões (usa formas verbais em 1ª pessoa para dar sua opinião).

Para saber classificar o narrador é essencial perguntar o seguinte: quem conta a história participa dos fatos? Se não participa, está contando a história de outra(s) pessoa(s), de uma terceira pessoa.

O que acontece no trecho de "Amar, verbo intransitivo"? Quando conta a história, o narrador usa a terceira pessoa, é assim que ele se posiciona diante dos fatos narrados. Quando dá opinião, faz comentários, saindo da esfera narrativa e entrando no campo argumentativo, posiciona-se em primeira pessoa. O que nos interessa classificar é o foco narrativo, logo, narrador em 3ª pessoa. Onisciente porque "lê os pensamentos" de Fräulein no início do trecho.

Agora é com você. Leia os fragmentos abaixo e identifique o tipo de narrador em cada um deles.

1- RUBIÃO fitava a enseada, - eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em outra cousa. Cortejava o passado com o presente. Que era, há um ano? Professor. Que é agora? Capitalista. Olha para si, para as chinelas (umas chinelas de Túnis, que lhe deu recente amigo, Cristiano Palha), para a casa, para o jardim, para a enseada, para os morros e para o céu; e tudo, desde as chinelas até o céu, tudo entra na mesma sensação de propriedade. (Quincas Borba – Machado de Assis)


2- "O que estou é velho. Cinquenta anos pelo São Pedro. Cinquenta anos perdidos, cinquenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra essa casca espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada. Cinquenta anos! Quantas hora inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar comida para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo?" (São Bernardo – Graciliano Ramos)

Respostas:
Trecho 1: 3ª pessoa, onisciente.
Trecho 2: 1ª pessoa, narrdor-protagonista.


*Enredo
É o desenrolar de fatos, que normalmente envolve um conflito a ser resolvido ao final da trama (desfecho). Ao momento de mais intensa dramaticidade chamamos clímax.

*Personagens
Seres, em geral imaginários, que vivem as situações do enredo. Quanto à importância que têm na trama, podem ser classificados como protagonistas (principais), antagonistas (opositores dos principais), ou coadjuvantes (secundários). Quanto à complexidade (profundidade), podem ser planos, quando são superficiais e constituem estereótipos (“o mocinho”, “o vilão”), ou multifacetados, quando são complexos, mais próximos da condição humana, com virtudes e defeitos que vão aparecendo com os conflitos gerados pela trama.

*Espaço (ambiente)
É o meio físico e social onde se desenvolvem as ações dos personagens.

*Tempo
O narrador pode contar os fatos no tempo em que eles estão ocorrendo; pode narrar um fato plenamente concluído e pode alternar presente e passado. O recurso utilizado para interromper a narrativa e contar algo que acontecera anteriormente chama-se flash-back. Assim, o tempo pode ser cronológico (quando os fatos são apresentados de acordo com a ordem dos acontecimentos) ou psicológico (quando é medido pela repercussão emocional nas personagens; a rememoração do passado desencadeia a narrativa).

*Discurso
Forma de que o narrador dispõe para apresentar as falas dos personagens.
-Direto - o narrador apresenta a própria personagem falando diretamente. É a voz da própria personagem que ouvimos.
“A voz de Juliana, plangente, disse:
- A senhora dá licença que eu vá logo ao médico?
- Vá, mas não se demore. Puxe-me essa saia atrás. Mais. O que é que você tem?
- Enjôos, minha senhora, peso no coração. Passei a noite em claro.”
(QUEIRÓS, Eça de. O Primo Basílio)

- Indireto - O narrador reconstrói, por meio de sua linguagem, o que as personagens teriam dito. Adaptando o texto acima teríamos:
“Juliana pediu licença para ir ao médico.
Luísa respondeu que fosse, mas sem demora. Ordenou-lhe que puxasse a saia atrás e então perguntou à criada o que ela tinha.
Juliana disse-lhe que sentia enjôos, um peso no coração, e que passara a noite em claro.”

- Indireto livre - A fala da personagem se confunde com a voz do narrador.
“Agora a chuva parou. Só está frio e muito bom. Não voltarei para casa. Ah, sim, isso é infinitamente consolador. Ele ficará surpreso? Sim, doze anos pesam como quilos de chumbo. Os dias se derretem, fundem-se e formam um só bloco, uma grande âncora. E a pessoa está perdida. Seu olhar adquire um jeito de poço fundo. Água escura e silenciosa. Seus gestos tornam-se brancos e ela só tem um medo na vida: que alguma coisa venha a transformá-la. Vive atrás de uma janela, olhando pelos vidros a estação das chuvas cobrir a do sol, depois tornar o verão e ainda as chuvas de novo. Os desejos são fantasmas que se diluem mal se acende a lâmpada do bom senso. Por que é que os maridos são o bom senso? O seu é particularmente sólido, bom e nunca erra.”
(LISPECTOR, Clarice. A fuga. In: A bela e a fera.
5. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995)

Testes


4. Questão (ENEM)

O Autor Invisível

Certa vez, Quando se realizava um “garden-party” num dos castelos da Inglaterra, compareceu um distinto ancião, muito bem-posto e apoiado na sua bengala. E, para constrangimento de todos, olhava detidamente na cara de cada um, como se se tratasse de um bicho ou de uma coisa. E como alguém indagasse quem era, respondeu o anfitrião que se tratava do romancista Sir Bulver-Lytton, já completamente gagá e que se considerava invisível.
Gagá? Mas o que ele estava realizando era o ideal de todo verdadeiro romancista: ser isento de quaisquer inibições, de respeitos de qualquer ordem, e ver portanto imparcialmente o mundo. Não embelezar, não reformar, não polemizar: – ver!

(Obs: Garden-party = festa dada num jardim)

O último parágrafo do texto contém
a) palavras de uma personagem, um dos presentes à festa, respondendo à informação do anfitrião.
b) o pensamento do ancião quando ouve o que se afirma sobre seu comportamento.
c) palavras do protagonista, que é o narrador da história.
d) a fala do narrador que, discordando do anfitrião, dá sua opinião sobre o comportamento do protagonista.
e) palavras do autor invisível.

2. (UFSM)
Leia os fragmentos a seguir
I. Foi de incerta feita – o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranqüilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei a janela. (Primeiras estórias, de Guimarães Rosa)
II. Do jeito, o velho André via o céu nublar-se, através da janela, enquanto as folhas da mangueira brilhavam com surda refulgência, como se absorvessem a escassa luz da manhã. (Melhores contos, de Osman Lins)

Quando se comparam os dois fragmentos, pode-se afirmar.
I. Ambos focalizaram personagens que observam pela janela a paz da natureza
II. Somente no primeiro, narrador e personagem compõem uma entidade única
III. As expressões “o arraial sendo de todo tranqüilo” (trecho I) e “as folhas da mangueira brilhavam com surda refulgência” (trecho II) indicam, através de diferentes formas, referencias a espaço ambiente.
Estão corretas
a) apenas I.
b) apenas I e II
c) apenas III
d) apenas II e III
e) I, II e III

Respostas:
1-D 2-D

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

O gato preto (Edgar Allan Poe)


Não espero nem peço que se dê crédito à história sumamente extraordinária e, no entanto, bastante doméstica que vou narrar. Louco seria eu se esperasse tal coisa, tratando-se de um caso que os meus próprios sentidos se negam a aceitar. Não obstante, não estou louco e, com toda a certeza, não sonho. Mas amanhã morro e, por isso, gostaria, hoje, de aliviar o meu espírito. Meu propósito imediato é apresentar ao mundo, clara e sucintamente, mas sem comentários, uma série de simples acontecimentos domésticos. Devido a suas conseqüências, tais acontecimentos me aterrorizaram, torturaram e destruíram.

No entanto, não tentarei esclarecê-los. Em mim, quase não produziram outra coisa senão horror - mas, em muitas pessoas, talvez lhes pareçam menos terríveis que grotesco. Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum - uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que, a minha, que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais.

Desde a infância, tornaram-se patentes a docilidade e o sentido humano de meu caráter. A ternura de meu coração era tão evidente, que me tomava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava, especialmente, de animais, e meus pais me permitiam possuir grande variedade deles. Passava com eles quase todo o meu tempo, e jamais me sentia tão feliz como quando lhes dava de comer ou os acariciava. Com os anos, aumentou esta peculiaridade de meu caráter e, quando me tomei adulto, fiz dela uma das minhas principais fontes de prazer. Aos que já sentiram afeto por um cão fiel e sagaz, não preciso dar-me ao trabalho de explicar a natureza ou a intensidade da satisfação que se pode ter com isso. Há algo, no amor desinteressado, e capaz de sacrifícios, de um animal, que toca diretamente o coração daqueles que tiveram ocasiões freqüentes de comprovar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade de um simples homem.

Casei cedo, e tive a sorte de encontrar em minha mulher disposição semelhante à minha. Notando o meu amor pelos animais domésticos, não perdia a oportunidade de arranjar as espécies mais agradáveis de bichos. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um cão, coelhos, um macaquinho e um gato.

Este último era um animal extraordinariamente grande e belo, todo negro e de espantosa sagacidade. Ao referir-se à sua inteligência, minha mulher, que, no íntimo de seu coração, era um tanto supersticiosa, fazia freqüentes alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos são feiticeiras disfarçadas. Não que ela se referisse seriamente a isso: menciono o fato apenas porque aconteceu lembrar-me disso neste momento.

Pluto - assim se chamava o gato - era o meu preferido, com o qual eu mais me distraía. Só eu o alimentava, e ele me seguia sempre pela casa. Tinha dificuldade, mesmo, em impedir que me acompanhasse pela rua.

Nossa amizade durou, desse modo, vários anos, durante os quais não só o meu caráter como o meu temperamento - enrubesço ao confessá-lo - sofreram, devido ao demônio da intemperança, uma modificação radical para pior. Tomava-me, dia a dia, mais taciturno, mais irritadiço, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Sofria ao empregar linguagem desabrida ao dirigir-me à minha mulher. No fim, cheguei mesmo a tratá-la com violência. Meus animais, certamente, sentiam a mudança operada em meu caráter. Não apenas não lhes dava atenção alguma, como, ainda, os maltratava. Quanto a Pluto, porém, ainda despertava em mim consideração suficiente que me impedia de maltratá-lo, ao passo que não sentia escrúpulo algum em maltratar os coelhos, o macaco e mesmo o cão, quando, por acaso ou afeto, cruzavam em meu caminho. Meu mal, porém, ia tomando conta de mim - que outro mal pode se comparar ao álcool? - e, no fim, até Pluto, que começava agora a envelhecer e, por conseguinte, se tomara um tanto rabugento, até mesmo Pluto começou a sentir os efeitos de meu mau humor.

Certa noite, ao voltar a casa, muito embriagado, de uma de minhas andanças pela cidade, tive a impressão de que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, e ele, assustado ante a minha violência, me feriu a mão, levemente, com os dentes. Uma fúria demoníaca apoderou-se, instantaneamente, de mim. Já não sabia mais o que estava fazendo. Dir-se-ia que, súbito, minha alma abandonara o corpo, e uma perversidade mais do que diabólica, causada pela genebra, fez vibrar todas as fibras de meu ser.Tirei do bolso um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e, friamente, arranquei de sua órbita um dos olhos! Enrubesço, estremeço, abraso-me de vergonha, ao referir-me, aqui, a essa abominável atrocidade.

Quando, com a chegada da manhã, voltei à razão - dissipados já os vapores de minha orgia noturna - , experimentei, pelo crime que praticara, um sentimento que era um misto de horror e remorso; mas não passou de um sentimento superficial e equívoco, pois minha alma permaneceu impassível. Mergulhei novamente em excessos, afogando logo no vinho a lembrança do que acontecera.

Entrementes, o gato se restabeleceu, lentamente. A órbita do olho perdido apresentava, é certo, um aspecto horrendo, mas não parecia mais sofrer qualquer dor. Passeava pela casa como de costume, mas, como bem se poderia esperar, fugia, tomado de extremo terror, à minha aproximação. Restava-me ainda o bastante de meu antigo coração para que, a princípio, sofresse com aquela evidente aversão por parte de um animal que, antes, me amara tanto. Mas esse sentimento logo se transformou em irritação. E, então, como para perder-me final e irremissivelmente, surgiu o espírito da perversidade. Desse espírito, a filosofia não toma conhecimento. Não obstante, tão certo como existe minha alma, creio que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano - uma das faculdades, ou sentimentos primários, que dirigem o caráter do homem. Quem não se viu, centenas de vezes, a cometer ações vis ou estúpidas, pela única razão de que sabia que não devia cometê-las? Acaso não sentimos uma inclinação constante mesmo quando estamos no melhor do nosso juízo, para violar aquilo que é lei, simplesmente porque a compreendemos como tal? Esse espírito de perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda final. O vivo e insondável desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de violentar sua própria natureza, de fazer o mal pelo próprio mal, foi o que me levou a continuar e, afinal, a levar a cabo o suplício que infligira ao inofensivo animal. Uma manhã, a sangue frio, meti-lhe um nó corredio em torno do pescoço e enforquei-o no galho de uma árvore. Fi-lo com os olhos cheios de lágrimas, com o coração transbordante do mais amargo remorso. Enforquei-o porque sabia que ele me amara, e porque reconhecia que não me dera motivo algum para que me voltasse contra ele. Enforquei-o porque sabia que estava cometendo um pecado - um pecado mortal que comprometia a minha alma imortal, afastando-a, se é que isso era possível, da misericórdia infinita de um Deus infinitamente misericordioso e infinitamente terrível.

Na noite do dia em que foi cometida essa ação tão cruel, fui despertado pelo grito de "fogo!". As cortinas de minha cama estavam em chamas. Toda a casa ardia. Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus bens terrenos foram tragados pelo fogo, e, desde então, me entreguei ao desespero.

Não pretendo estabelecer relação alguma entre causa e efeito - entre o desastre e a atrocidade por mim cometida. Mas estou descrevendo uma seqüência de fatos, e não desejo omitir nenhum dos elos dessa cadeia de acontecimentos. No dia seguinte ao do incêndio, visitei as ruínas. As paredes, com exceção de uma apenas, tinham desmoronado. Essa única exceção era constituída por um fino tabique interior, situado no meio da casa, junto ao qual se achava a cabeceira de minha cama. O reboco havia, aí, em grande parte, resistido à ação do fogo - coisa que atribuí ao fato de ter sido ele construído recentemente. Densa multidão se reunira em torno dessa parede, e muitas pessoas examinavam, com particular atenção e minuciosidade, uma parte dela, As palavras "estranho!", "singular!", bem como outras expressões semelhantes, despertaram-me a curiosidade. Aproximei-me e vi, como se gravada em baixo-relevo sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A imagem era de uma exatidão verdadeiramente maravilhosa. Havia uma corda em tomo do pescoço do animal.

Logo que vi tal aparição - pois não poderia considerar aquilo como sendo outra coisa - , o assombro e terror que se me apoderaram foram extremos. Mas, finalmente, a reflexão veio em meu auxílio. O gato, lembrei-me, fora enforcado num jardim existente junto à casa. Aos gritos de alarma, o jardim fora imediatamente invadido pela multidão. Alguém deve ter retirado o animal da árvore, lançando-o, através de uma janela aberta, para dentro do meu quarto. Isso foi feito, provavelmente, com a intenção de despertar-me. A queda das outras paredes havia comprimido a vítima de minha crueldade no gesso recentemente colocado sobre a parede que permanecera de pé. A cal do muro, com as chamas e o amoníaco desprendido da carcaça, produzira a imagem tal qual eu agora a via.

Embora isso satisfizesse prontamente minha razão, não conseguia fazer o mesmo, de maneira completa, com minha consciência, pois o surpreendente fato que acabo de descrever não deixou de causar-me, apesar de tudo, profunda impressão. Durante meses, não pude livrar-me do fantasma do gato e, nesse espaço de tempo, nasceu em meu espírito uma espécie de sentimento que parecia remorso, embora não o fosse. Cheguei, mesmo, a lamentar a perda do animal e a procurar, nos sórdidos lugares que então freqüentava, outro bichano da mesma espécie e de aparência semelhante que pudesse substituí-lo.

Uma noite, em que me achava sentado, meio aturdido, num antro mais do que infame, tive a atenção despertada, subitamente, por um objeto negro que jazia no alto de um dos enormes barris, de genebra ou rum, que constituíam quase que o único mobiliário do recinto. Fazia já alguns minutos que olhava fixamente o alto do barril, e o que então me surpreendeu foi não ter visto antes o que havia sobre o mesmo. Aproximei-me e toquei-o com a mão. Era um gato preto, enorme - tão grande quanto Pluto - e que, sob todos os aspectos, salvo um, se assemelhava a ele. Pluto não tinha um único pêlo branco em todo o corpo - e o bichano que ali estava possuía uma mancha larga e branca, embora de forma indefinida, a cobrir-lhe quase toda a região do peito.

Ao acariciar-lhe o dorso, ergueu-se imediatamente, ronronando com força e esfregando-se em minha mão, como se a minha atenção lhe causasse prazer. Era, pois, o animal que eu procurava. Apressei-me em propor ao dono a sua aquisição, mas este não manifestou interesse algum pelo felino. Não o conhecia; jamais o vira antes.

Continuei a acariciá-lo e, quando me dispunha a voltar para casa, o animal demonstrou disposição de acompanhar-me. Permiti que o fizesse - detendo-me, de vez em quando, no caminho, para acariciá-lo. Ao chegar, sentiu-se imediatamente à vontade, como se pertencesse a casa, tomando-se, logo, um dos bichanos preferidos de minha mulher.

De minha parte, passei a sentir logo aversão por ele. Acontecia, pois, justamente o contrário do que eu esperava. Mas a verdade é que - não sei como nem por quê - seu evidente amor por mim me desgostava e aborrecia. Lentamente, tais sentimentos de desgosto e fastio se converteram no mais amargo ódio. Evitava o animal. Uma sensação de vergonha, bem como a lembrança da crueldade que praticara, impediam-me de maltratá-lo fisicamente. Durante algumas semanas, não lhe bati nem pratiquei contra ele qualquer violência; mas, aos poucos - muito gradativamente - , passei a sentir por ele inenarrável horror, fugindo, em silêncio, de sua odiosa presença, como se fugisse de uma peste.

Sem dúvida, o que aumentou o meu horror pelo animal foi a descoberta, na manhã do dia seguinte ao que o levei para casa, que, como Pluto, também havia sido privado de um dos olhos. Tal circunstância, porém, apenas contribuiu para que minha mulher sentisse por ele maior carinho, pois, como já disse, era dotada, em alto grau, dessa ternura de sentimentos que constituíra, em outros tempos, um de meus traços principais, bem como fonte de muitos de meus prazeres mais simples e puros.

No entanto, a preferência que o animal demonstrava pela minha pessoa parecia aumentar em razão direta da aversão que sentia por ele. Seguia-me os passos com uma pertinácia que dificilmente poderia fazer com que o leitor compreendesse. Sempre que me sentava, enrodilhava-se embaixo de minha cadeira, ou me saltava ao colo, cobrindo-me com suas odiosas carícias. Se me levantava para andar, metia-se-me entre as pemas e quase me derrubava, ou então, cravando suas longas e afiadas garras em minha roupa, subia por ela até o meu peito. Nessas ocasiões, embora tivesse ímpetos de matá-lo de um golpe, abstinha-me de fazê-lo devido, em parte, à lembrança de meu crime anterior, mas, sobretudo - apresso-me a confessá-lo - , pelo pavor extremo que o animal me despertava.

Esse pavor não era exatamente um pavor de mal físico e, contudo, não saberia defini-lo de outra maneira. Quase me envergonha confessar - sim, mesmo nesta cela de criminoso - , quase me envergonha confessar que o terror e o pânico que o animal me inspirava eram aumentados por uma das mais puras fantasias que se possa imaginar. Minha mulher, mais de uma vez, me chamara a atenção para o aspecto da mancha branca a que já me referi, e que constituía a única diferença visível entre aquele estranho animal e o outro, que eu enforcara. O leitor, decerto, se lembrará de que aquele sinal, embora grande, tinha, a princípio, uma forma bastante indefinida. Mas, lentamente, de maneira quase imperceptível - que a minha imaginação, durante muito tempo, lutou por rejeitar como fantasiosa -, adquirira, por fim, uma nitidez rigorosa de contornos. Era, agora, a imagem de um objeto cuja menção me faz tremer... E, sobretudo por isso, eu o encarava como a um monstro de horror e repugnância, do qual eu, se tivesse coragem, me teria livrado. Era agora, confesso, a imagem de uma coisa odiosa, abominável: a imagem da forca! Oh, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte!

Na verdade, naquele momento eu era um miserável - um ser que ia além da própria miséria da humanidade. Era uma besta-fera, cujo irmão fora por mim desdenhosamente destruído... uma besta-fera que se engendrara em mim, homem feito à imagem do Deus Altíssimo. Oh, grande e insuportável infortúnio! Ai de mim! Nem de dia, nem de noite, conheceria jamais a bênção do descanso! Durante o dia, o animal não me deixava a sós um único momento; e, à noite, despertava de hora em hora, tomado do indescritível terror de sentir o hálito quente da coisa sobre o meu rosto, e o seu enorme peso - encarnação de um pesadelo que não podia afastar de mim - pousado eternamente sobre o meu coração!

Sob a pressão de tais tormentos, sucumbiu o pouco que restava em mim de bom. Pensamentos maus converteram-se em meus únicos companheiros - os mais sombrios e os mais perversos dos pensamentos. Minha rabugice habitual se transformou em ódio por todas as coisas e por toda a humanidade - e enquanto eu, agora, me entregava cegamente a súbitos, freqüentes e irreprimíveis acessos de cólera, minha mulher - pobre dela! - não se queixava nunca convertendo-se na mais paciente e sofredora das vítimas.

Um dia, acompanhou-me, para ajudar-me numa das tarefas domésticas, até o porão do velho edifício em que nossa pobreza nos obrigava a morar, O gato seguiu-nos e, quase fazendo-me rolar escada abaixo, me exasperou a ponto de perder o juízo. Apanhando uma machadinha e esquecendo o terror pueril que até então contivera minha mão, dirigi ao animal um golpe que teria sido mortal, se atingisse o alvo. Mas minha mulher segurou-me o braço, detendo o golpe. Tomado, então, de fúria demoníaca, livrei o braço do obstáculo que o detinha e cravei-lhe a machadinha no cérebro. Minha mulher caiu morta instantaneamente, sem lançar um gemido.

Realizado o terrível assassínio, procurei, movido por súbita resolução, esconder o corpo. Sabia que não poderia retirá-lo da casa, nem de dia nem de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos.

Ocorreram-me vários planos. Pensei, por um instante, em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los por meio do fogo. Resolvi, depois, cavar uma fossa no chão da adega. Em seguida, pensei em atirá-lo ao poço do quintal. Mudei de idéia e decidi metê-lo num caixote, como se fosse uma mercadoria, na forma habitual, fazendo com que um carregador o retirasse da casa. Finalmente, tive uma idéia que me pareceu muito mais prática: resolvi emparedá-lo na adega, como faziam os monges da Idade Média com as suas vítimas.

Aquela adega se prestava muito bem para tal propósito. As paredes não haviam sido construídas com muito cuidado e, pouco antes, haviam sido cobertas, em toda a sua extensão, com um reboco que a umidade impedira de endurecer. Ademais, havia uma saliência numa das paredes, produzida por alguma chaminé ou lareira, que fora tapada para que se assemelhasse ao resto da adega. Não duvidei de que poderia facilmente retirar os tijolos naquele lugar, introduzir o corpo e recolocá-los do mesmo modo, sem que nenhum olhar pudesse descobrir nada que despertasse suspeita.

E não me enganei em meus cálculos. Por meio de uma alavanca, desloquei facilmente os tijolos e tendo depositado o corpo, com cuidado, de encontro à parede interior. Segurei-o nessa posição, até poder recolocar, sem grande esforço, os tijolos em seu lugar, tal como estavam anteriormente. Arranjei cimento, cal e areia e, com toda a precaução possível, preparei uma argamassa que não se podia distinguir da anterior, cobrindo com ela, escrupulosamente, a nova parede. Ao terminar, senti-me satisfeito, pois tudo correra bem. A parede não apresentava o menor sinal de ter sido rebocada. Limpei o chão com o maior cuidado e, lançando o olhar em tomo, disse, de mim para comigo: "Pelo menos aqui, o meu trabalho não foi em vão".

O passo seguinte foi procurar o animal que havia sido a causa de tão grande desgraça, pois resolvera, finalmente, matá-lo. Se, naquele momento, tivesse podido encontrá-lo, não haveria dúvida quanto à sua sorte: mas parece que o esperto animal se alarmara ante a violência de minha cólera, e procurava não aparecer diante de mim enquanto me encontrasse naquele estado de espírito. Impossível descrever ou imaginar o profundo e abençoado alívio que me causava a ausência de tão detestável felino. Não apareceu também durante a noite - e, assim, pela primeira vez, desde sua entrada em casa, consegui dormir tranqüila e profundamente. Sim, dormi mesmo com o peso daquele assassínio sobre a minha alma.

Transcorreram o segundo e o terceiro dia - e o meu algoz não apareceu. Pude respirar, novamente, como homem livre. O monstro, aterrorizado fugira para sempre de casa. Não tomaria a vê-lo! Minha felicidade era infinita! A culpa de minha tenebrosa ação pouco me inquietava. Foram feitas algumas investigações, mas respondi prontamente a todas as perguntas. Procedeu-se, também, a uma vistoria em minha casa, mas, naturalmente, nada podia ser descoberto. Eu considerava já como coisa certa a minha felicidade futura.

No quarto dia após o assassinato, uma caravana policial chegou, inesperadamente, a casa, e realizou, de novo, rigorosa investigação. Seguro, no entanto, de que ninguém descobriria jamais o lugar em que eu ocultara o cadáver, não experimentei a menor perturbação. Os policiais pediram-me que os acompanhasse em sua busca. Não deixaram de esquadrinhar um canto sequer da casa. Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram novamente ao porão. Não me alterei o mínimo que fosse. Meu coração batia calmamente, como o de um inocente. Andei por todo o porão, de ponta a ponta. Com os braços cruzados sobre o peito, caminhava, calmamente, de um lado para outro. A polícia estava inteiramente satisfeita e preparava-se para sair. O júbilo que me inundava o coração era forte demais para que pudesse contê-lo. Ardia de desejo de dizer uma palavra, uma única palavra, à guisa de triunfo, e também para tomar duplamente evidente a minha inocência.

- Senhores - disse, por fim, quando os policiais já subiam a escada - , é para mim motivo de grande satisfação haver desfeito qualquer suspeita. Desejo a todos os senhores ótima saúde e um pouco mais de cortesia. Diga-se de passagem, senhores, que esta é uma casa muito bem construída... (Quase não sabia o que dizia, em meu insopitável desejo de falar com naturalidade.) Poderia, mesmo, dizer que é uma casa excelentemente construída. Estas paredes - os senhores já se vão? - , estas paredes são de grande solidez.

Nessa altura, movido por pura e frenética fanfarronada, bati com força, com a bengala que tinha na mão, justamente na parte da parede atrás da qual se achava o corpo da esposa de meu coração.

Que Deus me guarde e livre das garras de Satanás! Mal o eco das batidas mergulhou no silêncio, uma voz me respondeu do fundo da tumba, primeiro com um choro entrecortado e abafado, como os soluços de uma criança; depois, de repente, com um grito prolongado, estridente, contínuo, completamente anormal e inumano. Um uivo, um grito agudo, metade de horror, metade de triunfo, como somente poderia ter surgido do inferno, da garganta dos condenados, em sua agonia, e dos demônios exultantes com a sua condenação.

Quanto aos meus pensamentos, é loucura falar. Sentindo-me desfalecer, cambaleei até à parede oposta. Durante um instante, o grupo de policiais deteve-se na escada, imobilizado pelo terror. Decorrido um momento, doze braços vigorosos atacaram a parede, que caiu por terra. O cadáver, já em adiantado estado de decomposição, e coberto de sangue coagulado, apareceu, ereto, aos olhos dos presentes.

Sobre sua cabeça, com a boca vermelha dilatada e o único olho chamejante, achava-se pousado o animal odioso, cuja astúcia me levou ao assassínio e cuja voz reveladora me entregava ao carrasco.

Eu havia emparedado o monstro dentro da tumba!

domingo, 22 de fevereiro de 2009

Venha ver o pôr-do-sol (Lygia Fagundes Telles)


Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.
Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinham um jeito jovial de estudante.
- Minha querida Raquel.
Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.
- Vejam que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do taxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima
Ele sorriu entre malicioso e ingênuo.
- Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância...Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete-léguas, lembra?
- Foi para falar sobre isso que você me fez subir até aqui? - perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. - Hem?!
- Ah, Raquel... - e ele tomou-a pelo braço rindo.
- Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado...Juro que eu tinha que ver uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então fiz mal?
- Podia ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a voz – E que é isso aí? Um cemitério?
Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.
- Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo – acrescentou, lançando um olhar às crianças rodando na sua ciranda. Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro. Sorriu. - Ricardo e suas idéias. E agora? Qual é o programa?
Brandamente ele a tomou pela cintura.
- Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr do sol mais lindo do mundo.
Perplexa, ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada.
- Ver o pôr do sol!...Ah, meu Deus...Fabuloso, fabuloso!...Me implora um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr do sol num cemitério...
Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta.
- Raquel minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura...
- E você acha que eu iria?
- Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um instante numa rua afastada...- disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento –Você fez bem em vir.
- Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num bar?
- Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.
- Mas eu pago.
- Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico.
Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.
- Foi um risco enorme Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero ver se alguma das suas fabulosas idéias vai me consertar a vida.
- Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. – Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.
- É um risco enorme, já disse . Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros.
- Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo...
O mato rasteiro dominava tudo. E, não satisfeito de ter se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrando-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com a sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando vagarosamente pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados.
- É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, é deprimente – exclamou ela atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada.- Vamos embora, Ricardo, chega.
- Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da tarde, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa.
- Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.
Delicadamente ele beijou-lhe a mão.
- Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.
- É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.
- Ele é tão rico assim?
- Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...
Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.
- Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?
Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.
- Sabe Ricardo, acho que você é mesmo tantã...Mas, apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Palavra que, quando penso, não entendo até hoje como agüentei tanto, imagine um ano.
- É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora. Hem?
- Nenhum - respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: - A minha querida esposa, eternas saudades - leu em voz baixa. Fez um muxoxo.- Pois sim. Durou pouco essa eternidade.
Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.
Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja- disse, apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas...Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.
Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.
- Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim – Deu-lhe um rápido beijo na face. - Chega Ricardo, quero ir embora.
- Mais alguns passos...
- Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou para atrás. – Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.
- A boa vida te deixou preguiçosa. Que feio – lamentou ele, impelindo-a para frente. – Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr do sol. – E, tomando-a pela cintura: - Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.
- Sua prima também?
- Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos...Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas...Penso agora que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.
- Vocês se amaram?
- Ela me amou. Foi a única criatura que...- Fez um gesto. – Enfim não tem importância.
Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o
- Eu gostei de você, Ricardo.
- E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?
Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.
- Esfriou, não? Vamos embora.
- Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.
Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombro do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba.
Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha.
- Que triste é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?
Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu melancólico.
- Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo?
- Mas já disse que o que eu mais amo neste cemitério é precisamente esse abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.
Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.
- E lá embaixo?
- Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó- murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. – A cômoda de pedra. Não é grandiosa?
Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.
- Todas estas gavetas estão cheias?
- Cheias?...- Sorriu.- Só as que tem o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe- prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro da gaveta.
Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.
- Vamos, Ricardo, vamos.
- Você está com medo?
- Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!
Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado:
- A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato. Foi umas duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e vejo-a se exibir, estou bonita? Estou bonita?...- Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente.- Não, não é que fosse bonita, mas os olhos...Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus.
Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.
- Que frio que faz aqui. E que escuro, não estou enxergando...
Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.
- Pegue, dá para ver muito bem...- Afastou-se para o lado.- Repare nos olhos.
- Mas estão tão desbotados, mal se vê que é uma moça...- Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente.- Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil oitocentos e falecida...- Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel – Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti...
Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso.
- Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso? Brincadeira mais cretina! – exclamou ela, subindo rapidamente a escada. – Não tem graça nenhuma, ouviu?
Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.
- Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! – ordenou, torcendo o trinco.- Detesto esse tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!
- Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr do sol mais belo do mundo.
Ela sacudia a portinhola.
- Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente!- Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. - Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra...
Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque.
- Boa noite, Raquel.
- Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... - gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo.- Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos!- exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando.
- Não, não...
Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxando as duas folhas escancaradas.
- Boa noite, meu anjo.
Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.
- Não...
Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido.
No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano:
- NÃO!
Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.



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Lygia Fagundes Telles In:.Antes do Baile Verde.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

A Morta (Guy de Maupassant)


Eu a amara perdidamente! Porque amamos? É realmente estranho ver no mundo apenas um ser, ter no espírito um único pensamento, no coração um único desejo e no boca um único nome: um nome que ascende ininterruptamente, que sobe das profundezas da alma como a água de uma fonte, que ascende aos lábios, e que dizemos, repetimos, murmuramos o tempo todo, por toda parte, como uma prece.

Não vou contar a nossa história. O amor só tem uma história, sempre a mesma. Encontrei-a e amei-a. Eis tudo. E vivi durante um ano na sua ternura, nos seus braços, nas suas carícias, no seu olhar, nos seus vestidos, na sua voz, evolvido, preso, acorrentado a tudo que vinha dela, de maneira tão absoluta de maneira que nem sabia mais se era dia ou noite, se estava morto ou vivo, na velha Terra ou em outro lugar qualquer.

E depois ela morreu. Como? Não sei, não sei mais.

Voltou toda molhada, nutria noite de chuva, e, no dia seguinte, tossia. Tossiu durante cerca de uma semana e ficou de cama.

O que aconteceu? Não sei mais.

Médicos chegavam, receitavam, retiravam-se. Traziam remédios; uma mulher obrigava-a a tomá-los. Tinha as mãos quentes, a testa ardente e úmida, o olhar brilhante e triste. Falava-lhe, ela me respondia. O que dissemos um ao outro? Não sei mais. Esqueci tudo, tudo, tudo! Ela morreu, lembro-me muito bem do seu leve suspuiro, tão fraco, o último. A enfermeira exclamou: "Ah! Compreendi, compreendi!"

Não soube de mais nada, nada. Vi um padre que falou assim: "Sua amante." Tive a impressão de que a insultava. Já que estava morta, ninguém mais tinha o direito de saber que fora minha amante. Expulsei-o. Veio outro que foi muito bondoso, muito terno. Chorei quando me falou dela.

Consultaram-me sobre mil coisas relacionadas com o enterro. Não sei mais. Contudo, lembro-me muito bem do caixão, do ruído das marteladas quando a enterraram lá dentro. Ah! Meu Deus!

Ela foi enterrada! Enterrada! Ela! Naquele buraco! Algumas pessoas tinham vindo, amigas. Caminhei durante muito tempo pelas ruas. Depois voltei para a casa. No dia seguinte, parti para uma viagem.



Ontem, regressei a Paris.

Quando revi o meu quarto, o nosso quarto, a nossa cama, os nossos móveis, toda essa casa onde ficara tudo o que resta da vida de um ser depois da sua morte, o desgosto apoderou-se de mim novamente, de uma forma tão violenta que quase abri a janela para atirar-me à rua. Não podendo mais permanecer no meio daqueles objetos, dequelas paredes que a tinham encerrado, abrigado, e que deviam conservar em suas fendas imperceptíveis milhares de átomos seus, da sua carne e da sua respiração, peguei meu chapéu para sair. De súbito, ao atingir a porta, passei diante do grande espelho que ela mandara colocar no vestíbulo para mirar-se, dos pés à cabeça, todos os dias antes de sair, para ver se toda a sua toalete lhe ia bem, se estava correta e elegante, das botinas ao chapéu.

E parei, de chofre, diante desse espelho que tantas vezes a refletira. Tantas, tantas vezes, que também deveria ter guardado a sua imagem.

Fiquei lá, de pé, trêmulo, os olhos fixos no vidro liso, profundo, vazio, mas que a contivera toda, que a possuíra tanto quanto eu, tanto quanto o meu olhar apaixonado. Tive a impressão de que amava aquele espelho - toquei-o - estava frio! Ah! recordação! recordação! Espelho doloroso, espelho ardente, espelho vivo, espelho horrível, que inflige todas as torturas! Felizes são os homens cujo coração, como um espelho onde os reflexos deslizam e se apagam, esquece tudo o que contemplou e mirou na sua feição, no seu amor! Como sofro! Saí e, involuntariamente, sem saber, sem querer, dirigi-me ao cemitério. Encontrei seu túmulo, um túmulo singelo, uma cruz de mármore com algumas palavras: "Ela amou, foi amada, e morreu."

Lá estava ela, embaixo, apodrecendo! Que horror! Eu soluçava, a fronte no chão.

Fiquei lá por muito tempo, muito tempo. Depois percebi que a noite se aproximava. Então, um desejo estranho, louco, um desejo de amante desesperado apderou-se de mim. Resolvi passar a noite junto dela, a última noite, chorando no seu túmulo. Mas me veriam, me expulsariam. Que fazer? Fui esperto. Levantei-me e comecei a vagar pela cidade dos desaparecidos. Vagava, vagava. Como é pequena essa cidade ao lado da outra, daquela em que vivemos! Precisamos de casas altas, de ruas, de tanto espaço, para as quatro gerações que vêem a luz ao mesmo tempo, que bebem a água das fontes, o vinho das vinhas e comem o pão das planícies.

E para todas as gerações dos mortos, para toda a série de homens que chegaram até nós, quase nada, um terreno apenas, quase nada! A terra os toma de volta, o esquecimento os apaga. Adeus!

Na extremidade do cemitério habitado, avistei subitamente o cemitério abandonado, onde os velhos defuntos acabam de misturar-se à terra, onde as próprias cruzes apodrecem, e onde amanhã serão colocados os últimos que chegarem. Está cheio de rosas silvestres de ciprestes negros e vigorosos, um jardim triste e soberbo alimentado com carne humana.

Estava só, completamente só. Agachei-me perto de uma árvores verde. Escondi-me completamente entre os galhos grossos e escuros.

E esperei, agarrado ao tronco como um náufrago aos destroços.

Quando a noite ficou escura, bem escura, deixei o meu abrigo e comecei a caminhar de mansinho, com passos lentos e surdos, por essa terra repleta de mortos.

Vaguei durante muito, muito tempo, não a encontrava. Braços estendidos, olhos abertos, esbarrando nos túmulos com as mãos, com os pés, com os joelhos, com o peito, e até com a cabeça, eu vagava sem encontrá-la. Tocava, tateava, como um cego que procura o caminho, apalpava pedras, cruzes, grades de ferro, coroas de vidro, coroas de flores murchas! Lia nomes com os dedos, passando-os sobre as letras. Que noite! Não a encontrava!

Não havia lua! Que noite! Sentia medo, um medo horrível, nesses caminhos estreitos entre duas filas de túmulos! Túmulos! Túmulos! Túmulos. Sempre túmulos! À direita, à esquerda, à frente, à minha volta, por toda parte, túmulos! Sentei-me num deles, pois não podia mais caminhar, de tal forma meus joelhos se dobravam. Ouvia meu coração bater! E também ouvia outra coisa! O quê? Um rumor confuso, indefinível! Viria esse ruído do meu cérebro desvairado, da noite impenetrável, ou da terra misteriosa, da terra semeada de cadáveres humanos? Olhei à minha volta!

Quanto tempo fiquei ali? Não sei. Estava paralisado de terror, alucinado de pavor, prestes a gritar, prestes a morrer.

E, de súbito, tive a impressão de que a laje de mármore onde estava sentado se movia. Realmente ela se movia, como se a estivessem levantando com um salto, precipitei-me para o túmulo vizinho e vi, sim, vi erguer-se verticalmente a laje que acabara de deixar; e o morto apareceu, um esqueleto nu que empurrava a lápide com as costas encurvadas. Eu via, via muito bem, embora a escuridão fosse profunda. Pude ler sobre a cruz:

"Aqui jaz Jacques Olivant, morto aos cinquenta e um anos de idade. Amava os seus, foi honesto e bom, e morreu na paz do Senhor."

O morto também lia o que estava escrito no seu túmulo. Depois, apanhou uma pedra no chão, uma pedrinha pontiaguda e começou a raspar cuidadosamente o que lá estava. Apagou tudo, lentamente, contemplando com seus olhos vazios o lugar onde ainda há pouco existiam letras gravadas; e, com a ponta do osso que fora seu indicador, escrever com letras luminosas, como essas linhas que traçamos com a ponta de um fósforo:

"Aqui jaz jacques Olivant, morto aos cinquenta e um anos de idade. Apressou com maus tratos a morte do pai de quem desejava herdar, torturou a mulher, atormentou os filhos, enganou os vizinhos, roubou sempre que pode e morreu miseravelmente."

Quando acabou de escrever o morto contemplou sua obra, imóvel. E, voltando-me, notei que todos os túmulos estavam abertos, que todos os cadáveres os tinham abandonado, que todos tinham apagado as mentiras inscritas pelos parentes na pedra funerária, para aí restabelecerem a verdade.

E eu via que todos tinham sido carrascos dos parentes, vingativos, desonetos, hipócritas, mentirosos, pérfidos, caluniadores, invejosos, que tinham roubado, enganado, cometido todos os atos vergonhosos, abomináveis, esses bons pais, essas esposas fiéis, esses filhos devotados, essas moças castas, esses comerciantes probos, esses homens e mulheres ditos irrepreensíveis.

Escreviam todos ao mesmo tempo, no limiar da sua morada eterna, a cruel, terrível e santa verdade que todo mundo ignora ou finge ignorar nesta Terra.

Imaginei que também ela devia ter escrito a verdade no seu túmulo. E agora já sem medo, correndo por entre os caixões entreabertos, por entre os cadáveres, por entre os esqueletos, fui em sua direção, certo de que logo a encontraria.

Reconheci-a de longe, sem ver o rosto envolto no sudário.

E sobre a cruz de mármore onde há pouco lera: "Ela amou, foi amada, e morreu", divisei:

"Tendo saído, um dia, para enganar seu amante, resfriou-se sob a chuva, e morreu."



Parece que me encontraram inanimado, ao nascer do dia, junto a uma sepultura.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

A Brincadeira (Tchekov)


Um claro dia de inverno…Faz tanto frio que a neve estala debaixo dos pés, e Nádenka, que eu levo pelo braço, fica com os cachos no lado da cabeça e o pelo fininho no lábio superior cobertos de orvalho cintilante. Estamos no topo de um morro muito alto. Diante dos nossos pés, até a planície, lá embaixo, estende-se um declive escorregadio e brilhante no qual o sol se reflete como um espelho. Ao nosso lado está um pequeno trenó forrado de pano vermelho.

“Vamos deslizar até lá embaixo, Nadêjda Petrovna”, imploro, “Só uma vez! Garanto que vamos ficar sãos e salvos!”

Mas ela tem medo. A distância entre as suas pequeninas galochas e o fim da montanha de gelo lhe parece um abismo terrível, de profundidade incalculável. Ela fica tonta e perde o fôlego só de olhar lá para baixo, quando eu lhe proponho sentar no trenó – imagina então se ela arriscar despencar no precipício? Ela é capaz de morrer ou enlouquecer!

“Eu lhe suplico”, digo eu, “Não tenha medo! Você não percebe que isso é fraqueza? É covardia?”

Nádenka acaba cedendo, e eu vejo pelo seu rosto que ela acredita que cede com perigo da própria vida. Eu a acomodo, pálida e trêmula, no trenó, sentom-me também. Ponho o braço em volta dela e, juntos, nos precipitamos no abismo.

O trenó voa como uma bala. O ar chicoteia o rosto, silva nos ouvidos, bate, belisca com raiva, até doer, parece querer arrancar a cabeça dos ombros. A pressão do vento dificulta a respiração. É como se o diabo em pessoa tivesse nos agarrado com as patas, e, urrando, nos arrastasse para o inferno. Os objetos que nos cercam fundem-se num só longo risco, que corre vertiginoso. Parece que em mais um instante estaremos perdidos.

“Eu te amo, Nádia”, digo eu a meia voz.

O trenó começa a deslizar mais devagar, mais devagar, os uivos do vento e os zumbidos das lâminas do trenó já não são tão terríveis, a respiração já não é tão ofegante, e, finalmente, chegamos ao fim. Nádenka está mais morta do que viva. Pálida, mal consegue respirar… Eu a ajudo a levantar-se.

“Nunca mais faço isso!”, diz ela, encarando-me com os olhos dilatados, cheios de terror. “Por nada nesse mundo! Por pouco não morri!”

Logo depois ela volta a si e já me encara com um olhar interrogador: terei sido eu quem disse aquelas quatro palavras, ou foi uma alucinação dentro do zunido da ventania? Mas eu estou calado diante dela, fumando e examinando com atenção a minha luva.

Ela toma o meu braço e passeamos diante do morro. O prblema, visivelmente, não a deixa em paz. Aquelas palavras foram mesmo pronunciadas ou não? Sim ou não? Sim ou não? É uma questão de amor-próprio, de honra, de vida, de felicidade, uma questão muito importante, a mais importante do mundo. Nádenka examina o meu rosto com olhares impacientes, tristes, penetrantes, responde de qualquer jeito as minhas perguntas, espera que eu fale. Meu Deus! Que jogo de emoções neste rosto encantador, que jogo! Vejo nitidamente como ela luta consigo mesma. Ela precisa dizer alguma coisa, perguntar, mas não encontra as palavras. Está encabulada, amedrontada, embargada pela alegria…

“Sabe duma coisa?”, diz ela, sem olhar para mim.

“O quê?”, pergunto eu.

“Vamos de novo… Vamos deslizar pelo morro.”

Subimos pela escada até o alto. De novo faço Nádenka, pálida e trêmula, sentar no trenó, de novo despencamos no precipício medonho, de novo o vento uiva e as lâminas zunem, e de novo, quando o vôo do trenó está no auge, eu digo a meia voz:

“Eu te amo, Nádia.”

Quando finalmente o trenó pára, Nádenka lança um olhar para o morro que acabamos de descer voando, depois examina longamente o meu rosto, escuta, atenta, a minha voz indiferente e calma, e toda ela, toda, até mesmo o capote de peles e o capuz, toda a sua figurinha, transmite extrema perplexidade. E no seu rosto está escrito:

“Mas o que está acontecendo? Quem pronunciou aquelas palavras? Foi ele, ou meus ouvidos me enganaram?”

A incerteza a perturba, a impacienta. A pobrezinha não responde às minhas perguntas, franze a testa, está quase chorando.

“Você não prefere ir para casa?”, pergunto eu.

“Mas eu… Eu gosto dessas… descidas”, diz ela, enrubescendo. “Não quer descer o morro mais uma vez?”

Ela diz gostar destas descidas, e mesmo assim, quando chega o momento de sentar no trenó, como das outras vezes, ela fica pálida, trêmula, ofegante de medo.

Descemos pela terceira vez, e eu vejo como ela fixa o olhar no meu rosto, como observa os meus lábios. Mas eu aperto o lenço contra a boca, tusso, e quando chegamos no meio da encosta, deixo escapar:

“Eu te amo, Nádia!”

E assim o enigma continua. Nádenka se cala, está pensando… Eu a acompanho para casa, ela procura andar mais devagar, atrasa o passo, espera que eu lhe diga aquelas palavras. Eu eu vejo claramente como sofre, como tem que se esforçar para não dizer:

“Não pode ter sido o vento! Eu não quero que tenha sido o vento quem disse aquilo!”

No dia seguinte de manhã, recebo um bilhetinho: “Se for ao morro hoje, venha me buscar. N.” E desde essa manhã, comecei a ir com ela ao morro, todos os dias e, voando encosta abaixo no trenó, eu pronuncio, cada vez, a meia voz, as mesmas palavras:

“Eu te amo, Nádia!”

Logo Nádenka acostuma-se à frase, como outras pessoas se acostumam ao vinho ou à morfina. Não pode mais viver sem ela. É verdade que voar montanha abaixo lhe dá medo, como antes, mas agora o medo e o perigo acrescentam um encanto especial às palavras de amor, palavras que continuam sendo um enigma… Continuam oprimindo a alma. São sempre os mesmos suspeitos: eu e o vento… Qual dos dois lhe declara o seu amor, ela não sabe, mas ao que parece, isso já não importa, não importa o copo em que se bebe, importa é fica embriagada!

Um dia, fui até o morro sozinho; misturei-me à multidão e de repente vejo como Nádenka chega até o sopé, como me procura com os olhos… Depois, timidamente, ela sobe os degraus… Ela tem muito medo de ir sozinha, meu Deus, quanto medo! Está pálida como a neve, treme, vai adiante como se fosse para a fôrca, mas vai, vai sem olhar para trás, cheia de decisão. Pelo visto, ela resolveu finalmente tirar a prova: será que aquelas palavras estranhas vão se fazer ouvir quando eu não estiver junto? Então vejo como ela, lívida, com a boca meio aberta de terror, toma assento no trenó, fecha os olhos, e, despedindo-se para sempre do mundo, faz com que ele se ponha em movimento… zzzzz… zunem as lâminas. Será que ela ouviu aquelas palavras? Não sei… Só o que vejo é como ela se levanta to trenó, exausta, fraca. E pelo seu rosto percebe-se que nem ela mesmo sabe se ouviu alguma coisa ou não. O pavor, enquanto ela voava morro abaixo, roubou toda sua capacidade de ouvir, de distinguir os sons, de entender…

Mas então chega o mês de março, e com ele a primavera… O sol torna-se mais carinhoso. O nosso morro de gelo escurece, perde o seu brilho e derrete. Acabaram os passeios de trenó. A pobre Nádenka já não tem mais onde ouvir aquelas palavras, e nem há quem as pronuncie, pois o vento não se ouve mais, e eu me preparo para voltar a São Peterburgo, onde vou ficar muito tempo, talvez para sempre.

Pouco antes de partir, uns dois dias talvez, estava eu sentado, ao crepúsculo, no jardinzinho, separado do pátio onde mora Nádenka por uma cerca alta de madeira. Ainda faz bastante frio, ainda há neve pelos cantos, as árvores ainda estão mortas, mas já se sente o cheiro da primavera. Aproximo-me da cerca e espio pela fresta. Vejo como Nádenka sai para os degraus e fixa no céu o olhar tristonho… O vento da tarde lhe sopra no rosto, pálido e desanimado… Ele faz com que ela se lembre daquele outro vento, que uivava lá no morro, quando ela ouvia aquelas quatro palavras. Com isso o seu rosto fica triste, muito triste, e pela faze desliza uma lágrima… A pobrezinha estende os braços, como se implorasse ao vento que lhe traga mais uma vez aquelas quatro palavras. Eu espero o vento favorável, e sopro a meia vez:

“Eu te amo, Nádia!”

Meu Deus, o que aconteceu com Nádenka! Ela solta um grito, sorri com o rosto inteiro e estende os braços ao encontro do vento, risonha, feliz, tão bonita.

E eu vou arrumar as malas.

Isso tudo foi há muito tempo. Agora, já é casada; casaram-na, ou foi ela mesma que quis – não importa – com um secretário da Curadoria, e hoje ela já tem três filhos. Mas os nossos passeios no morro e a voz do vento trazendo-lhe as palavras “eu te amo, Nádenka”, não foram esquecidas. Para ela, isso é hoje a mais feliz, a mais comovente e a mais bela recordação de sua vida.

Mas eu, agora que estou mais velho, não compreendo mais, para que dizia aquelas palavras, não compreendo mais porque brincava…

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

No Retiro da Figueira - Conto de Moacyr Scliar (texto integral)


Sempre achei que era bom demais. O lugar, principalmente. O lugar era... Era maravilhoso. Bem como dizia o prospecto: maravilhoso. Arborizado, tranqüilo, um dos últimos locais – dizia o anúncio – onde você pode ouvir um bem-te-vi cantar. Verdade: na primeira vez que fomos lá ouvimos o bem-te-vi. E também constatamos que as casas eram sólidas e bonitas, exatamente como o prospecto as descrevia: estilo moderno, sólidas e bonitas. Vimos os gramados, os parques, os pôneis, o pequeno lago. Vimos o campo de aviação. Vimos a majestosa figueira que dava nome ao condomínio: Retiro da Figueira.
Mas o que mais agradou à minha mulher foi a segurança. Durante todo o trajeto de volta à cidade – e eram uns bons cinqüenta minutos – ela falou, entusiasmada, da cerca eletrificada, das torres de vigia, dos holofotes, do sistema de alarmes – e sobretudo dos guardas. Oito guardas, homens fortes, decididos – mas amáveis, educados. Aliás, quem nos recebeu naquela visita, e na seguinte, foi o chefe deles, um senhor tão inteligente e culto que logo pensei: “ah, mas ele deve ser formado em alguma universidade”. De fato: no decorrer da conversa ele mencionou – mas de maneira casual – que era formado em Direito. O que só fez aumentar o entusiasmo de minha mulher.
Ela andava muito assustada ultimamente. Os assaltos violentos se sucediam na vizinhança; trancas e porteiros eletrônicos já não detinham os criminosos. Todos os dias sabíamos de alguém roubado e espancado; e quando uma amiga nossa foi violentada por dois marginais, minha mulher decidiu – tínhamos de mudar de bairro. Tínhamos de procurar um lugar seguro.
Foi então que enfiaram o prospecto colorido sob nossa porta. Às vezes penso que se morássemos num edifício mais seguro o portador daquela mensagem publicitária nunca teria chegado a nós, e, talvez... Mas isto agora são apenas suposições. De qualquer modo, minha mulher ficou encantada com o Retiro da Figueira. Meus filhos estavam vidrados nos pôneis. E eu acabava de ser promovido na firma. As coisas todas se encadearam, e o que começou com um prospecto sendo enfiado sob a porta transformou-se – como dizia o texto – num novo estilo de vida.
Não fomos os primeiros a comprar casa no Retiro da Figueira. Pelo contrário; entre nossa primeira visita e a segunda – uma semana após – a maior parte das trinta residências já tinha sido vendida. O chefe dos guardas me apresentou a alguns dos compradores. Gostei deles: gente como eu, diretores de empresa, profissionais liberais, dois fazendeiros. Todos tinham vindo pelo prospecto. E quase todos tinham se decidido pelo lugar por causa da segurança.
Naquela semana descobri que o prospecto tinha sido enviado apenas a uma quantidade limitada de pessoas. Na minha firma, por exemplo, só eu o tinha recebido. Minha mulher atribuiu o fato a uma seleção cuidadosa de futuros moradores – e viu nisso mais um motivo de satisfação. Quanto a mim, estava achando tudo muito bom. Bom demais.
Mudamo-nos. A vida lá era realmente um encanto. Os bem-te-vis eram pontuais: às sete da manhã começavam seu afinado concerto. Os pôneis eram mansos, as aléias ensaibradas estavam sempre limpas. A brisa agitava as árvores do parque – cento e doze, bem como dizia o prospecto. Por outro lado, o sistema de alarmes era impecável. Os guardas compareciam periodicamente à nossa casa para ver se estava tudo bem – sempre gentis, sempre sorridentes. O chefe deles era uma pessoa particularmente interessada: organizava festas e torneios, preocupava-se com nosso bem-estar. Fez uma lista dos parentes e amigos dos moradores – para qualquer emergência, explicou, com um sorriso tranqüilizador. O primeiro mês decorreu – tal como prometido no prospecto – num clima de sonho. De sonho, mesmo.
Uma manhã de domingo, muito cedo – lembro-me que os bem-te-vis ainda não tinham começado a cantar – soou a sirene de alarme. Nunca tinha tocado antes, de modo que ficamos um pouco assustados – um pouco, não muito. Mas sabíamos o que fazer: nos dirigimos, em ordem, ao salão de festas, perto do lago. Quase todos ainda de roupão ou pijama.
O chefe dos guardas estava lá, ladeado por seus homens, todos armados de fuzis. Fez-nos sentar, ofereceu café. Depois, sempre pedindo desculpas pelo transtorno, explicou o motivo da reunião: é que havia marginais nos matos ao redor do Retiro e ele, avisado pela polícia, decidira pedir que não saíssemos naquele domingo.
– Afinal – disse, em tom de gracejo – está um belo domingo, os pôneis estão aí mesmo, as quadras de tênis...
Era mesmo um homem muito simpático. Ninguém chegou a ficar verdadeiramente contrariado.
Contrariados ficaram alguns no dia seguinte, quando a sirene tornou a soar de madrugada. Reunimo-nos de novo no salão de festas, uns resmungando que era segunda-feira, dia de trabalho. Sempre sorrindo, o chefe dos guardas pediu desculpas novamente e disse que infelizmente não poderíamos sair – os marginais continuavam nos matos, soltos. Gente perigosa; entre eles, dois assassinos foragidos. À pergunta de um irado cirurgião o chefe dos guardas respondeu que, mesmo de carro, não poderíamos sair; os bandidos poderiam bloquear a estreita estrada do Retiro.
– E vocês, por que não nos acompanham? – perguntou o cirurgião.
– E quem vai cuidar da família de vocês? – disse o chefe dos guardas, sempre sorrindo. 15º § Ficamos retidos naquele dia e no seguinte. Foi aí que a polícia cercou o local: dezenas de viaturas com homens armados, alguns com máscaras contra gases. De nossas janelas nós os víamos e reconhecíamos: o chefe dos guardas estava com a razão.
Passávamos o tempo jogando cartas, passeando ou simplesmente não fazendo nada. Alguns estavam até gostando. Eu não. Pode parecer presunção dizer isto agora, mas eu não estava gostando nada daquilo.
Foi no quarto dia que o avião desceu no campo de pouso. Um jatinho. Corremos para lá.
Um homem desceu e entregou uma maleta ao chefe dos guardas. Depois olhou para nós – amedrontado, pareceu-me – e saiu pelo portão da entrada, quase correndo.
O chefe dos guardas fez sinal para que não nos aproximássemos. Entrou no avião. Deixou a porta aberta, e assim pudemos ver que examinava o conteúdo da maleta. Fechou-a, chegou à porta e fez um sinal. Os guardas vieram correndo, entraram todos no jatinho. A porta se fechou, o avião decolou e sumiu.
Nunca mais vimos o chefe e seus homens. Mas estou certo que estão gozando o dinheiro pago por nosso resgate. Uma quantia suficiente para construir dez condomínios iguais ao nosso – que eu, diga-se de passagem, sempre achei que era bom demais.